Por
Dênio Augusto de Oliveira Moura*
De acordo com o Dicionário Aurélio, o verbo
regularizar tem o sentido de tornar regular, pôr em ordem, corrigir. Pressupõe,
assim, algo irregular ou, na acepção jurídica do termo, algo contrário à lei ou
ao direito.
No Brasil e, em especial, no Distrito Federal, a
invocação do termo tem sido recorrente e, por que não dizer, excessiva. De
fato, o que pode parecer um esforço do legislador e do administrador público
para corrigir o que está errado, na verdade, revela traço marcante da nossa
realidade: certa condescendência com a transgressão, o desvio e o ilícito.
Por certo, não nos referimos aqui àquelas
situações ainda não reguladas pelo legislador e que, devido à ausência de
disciplinamento, podem dar espaço a condutas inadequadas ao convívio social e
ao bem-comum. Referimo-nos aos casos de inobservância do ordenamento jurídico
existente.
Citamos como exemplos os loteamentos
clandestinos, as ocupações irregulares de áreas públicas, as violações ao
zoneamento da cidade, as edificações sem licenciamento e habite-se e os
conhecidos alvarás de funcionamento precário.
Em todos esses casos, uma combinação de erros,
omissões, desídia, exploração política, falta de planejamento e, muitas vezes,
má-fé, criou uma situação de fato insustentável que agora reclama pela “urgente”
regularização. E assim, o que começou como ilícito e, em determinados casos,
como crime, a merecer reprimendas pelo descumprimento da lei, acaba sendo visto
como fonte de “direitos”.
Essa visão distorcida do fenômeno tem gerado o
que poderíamos chamar de cultura da regularização, que não apenas tolera, mas
às vezes incentiva o surgimento de situações contrárias ao ordenamento
jurídico, na expectativa de que um dia venha a ser aplicada mais uma vez a
política do fato consumado.
As pseudojustificativas para que isso ocorra são
as mais diversas: geração de empregos, insegurança pública, ausência de
moradias, imposições do crescimento da cidade e do novo contexto social, entre
outras.
Apenas para mencionar um caso concreto, a Lei
Complementar Distrital n° 766/2008 permitiu a regularização de ocupações de
áreas públicas nas quadras comerciais da Asa Sul, os “puxadinhos”, admitindo a
ocupação de seis metros nos fundos das lojas, mediante padronização e pagamento
do preço público correspondente pelo uso do espaço.
O prazo inicialmente fixado para a adequação era
de 12 meses, “improrrogável”. No entanto, uma sucessão de leis vem prorrogando
a solução definitiva do problema, atualmente prevista para 30 de abril de 2015.
Enquanto isso, permanecem os absurdos que se veem nas entrequadras de Brasília,
em detrimento da qualidade de vida da população.
Parece inacreditável, mas situações como essa são
comuns na capital da República. De um lado, o Poder Público, incapaz de fazer
frente a tais desafios dentro da legalidade, passa a tolerar, em certa medida,
o ilícito. De outro, o transgressor se sente autorizado a infringir a lei para
atender seus anseios, por natureza, infinitos. No meio disso tudo fica o
cidadão cumpridor de seus deveres, que, como dissera Ruy Barbosa na conhecida
“Oração aos moços”, “[…] chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a
ter vergonha de ser honesto.”
É evidente a falta de recursos humanos e
materiais dos órgãos de fiscalização, como a Agefis, cuja estrutura está muito
aquém do necessário para prevenir e coibir, de fato, violações à ordem
urbanística do Distrito Federal. Além disso, convive-se com a deficiente
capacidade técnica de muitas administrações regionais — responsáveis pela
emissão de alvarás e licenças — integradas primordialmente por detentores de
cargos comissionados, sem vínculo com a administração pública, os quais são
substituídos a cada novo governo, levando consigo toda a experiência e a
memória institucional acumulada durante o período, deixando, no mais das vezes,
desamparados os sucessores.
Como a regularização visa remediar uma situação
de fato criada sem planejamento, grande parte dos danos causados à ordem
urbanística e ao meio ambiente torna-se irreversível. Além disso, o custo desse
processo é geralmente maior do que seria a regular implementação de políticas
públicas previamente estabelecidas e comprometidas com o desenvolvimento
sustentável da cidade. Infelizmente, quem arcará com o custo e com as
consequências dos erros do passado e do presente serão as gerações futuras.
Dênio Augusto de Oliveira Moura é titular
da 1ª Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanísta do MPDFT
Artigo publicado no Jornal Correio
Braziliense em 24 de setembro de 2013
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